segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Instantâneo de Paz


Cafeína no sangue. Amargo e doce na língua. Sensação de vastidão em minha alma, de completude com a Graça da Existência de todas as coisas. Encho-me de planos bons, de esperanças que me consolam antecipadamente o futuro sempre incerto.

Meus pés estão fincados no tempo presente. Vivo cheio desses "agoras" determinantes. Meu coração calejou de sentir saudades e já bate no seu ritmo normal, mesmo quando Belchior canta "Meu cordial brasileiro" no som da sala.

Estou aprendendo a equilibrar-me entre a ingenuidade dos pombos e a esperteza das serpentes; a não ter medo do mundo, a me sentir íntimo das vastas estradas, de desconhecidos que me são tão gentis gratuitamente!

Ando tomado pela quentura viva de uma fé!... Quero encontrar a todo custo a essência mansa da felicidade e a cada dia sinto-a mais próxima: nos abraços que recebo, na simplicidade de emoções sublimes e inesperadas, no sorriso-ímã de quem eu desejo que seja o meu amor.

Meu sono está mais tranquilo. Meus sonhos têm mais sentido. Sinto Deus no Tempo. Tenho paz em mim.


Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia - Sem data.

domingo, 13 de novembro de 2011

Firme e reticente



O mar me ajuda a não ter medo da dimensão dos meus dilemas. À medida que percorro a praia vou desfiando minhas interrogações nas pegadas que deixo na areia, nos suspiros profundos que despejo pela maresia.

Eu pensei que tua lembrança fosse ficar latejando em mim como a dor de um espinho que, mesmo depois de retirado, fica a impressão de que ainda está cravado. Não. És mais uma gaveta no meu arquivo de lembranças organizadas, das quais me permito perder as chaves para que a tentação de vasculhar essas nuances não me visite.

Eu também pensei que tudo fosse ficar com gosto de drama, que eu não conseguiria abrir as cortinas do quarto por pelo menos uma semana; mas tua franqueza me ajudou a me olhar no espelho e realmente tens razão quando dizes que minha luz não pode se dedicar apenas a ti. Minha luz é realmente inalcançável para tua treva egoísta, para teu medo pueril acostumado somente ao corpóreo, ao palpável, ao imediato.

Não te culpo, não me culpo. Não te quero insultar, mesmo o fazendo. O que mereces de mim agora? Meu silêncio já seria alguma coisa. Mas deixo nessa areia um rastro de minha poesia incompreendida, meu discurso vão para quem só foi capaz de sentir a volúpia da minha pele; para quem não teve alma de enxergar um palmo além do óbvio.

O mar está calmo. A luz é agradável. Consolo-me pelo que sei que sou. O Tempo é sábio e dá a duração que cada existência merece.

Hérlon Fernandes Gomes
Floresta Amazônica - Brasil

13 de Novembro de 2011.


sábado, 5 de novembro de 2011

CORAÇÃO MAMBEMBE



Queria encontrar a chave que rompesse o teu silêncio, porque tua mudez é um enigma, não me diz quase nada pelas tuas atitudes. Eu leio o teu desejo quando me beijas, quando nos deitamos juntos; mas estou longe de conhecer a zona profunda da tua alma, das tuas intenções, onde deve estar o ancoradouro desejado.


Queria o conforto de algumas certezas, queria enxergar tua nudez verdadeira onde tuas emoções descansam puras. Eu também me pergunto se mereço transpor o limite que me permites; eu me questiono se realmente saberei honrar teus tesouros preciosos. Então eu suporto teu mistério; suporto enxergar pelas  frestas  míopes das armaduras que te vestiste contra os que mal te amaram.

Meu coração mambembe, surrado pela poeira das distâncias e pelos espinhos do passado, já não possui ferrolho nem tramelas nas portas, deixa que o viajante entre e vasculhe todos os cômodos, que enxergue a tinta das paredes, sinta a cumplicidade dos móveis... Meu coração mambembe deseja abrigar bem,  longe de vaidades dispensáveis; precisa de morador que se preocupe com as plantas que amarelecem no alpendre, que se deite na rede cativa estendida na varanda.

Não, meus segredos não te assustariam. Minhas desilusões talvez te fizessem chorar; mas elas já foram todas exorcizadas e tornaram mais fortes as paredes deste coração  que pretende ser tua casa. Para cada cicatriz eu também tenho um sorriso; nenhuma tristeza em minha vida foi maior  que qualquer felicidade encontrada.

Agora estamos nós dois, na tua cama. Aliso teus cabelos, sinto tua quentura, desfruto da maciez dos teus lábios... Atravessaríamos a noite assim, sem que me reveles o princípio dos teus anseios, sem que me digas o que realmente pensas ao meu respeito, embora me saiba agradável ao teu lado...

Não, eu não vou atropelar teus passos; não vou vilipendiar a constância do teu tempo. Meu coração mambembe, de terras ressequidas, sempre aprendeu a viver cheio de esperanças, mesmo quando o céu mais azul não prometia chuvas.

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia
05 de Novembro de 2011.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O ÚLTIMO DITADOR



General, para quê um coração se és todo razão?

Na tua estátua de aço fundido está a imagem de tua alma metálica,

Cheia de botões e brochuras de vaidade

Perfilada pelos que te temiam, não pelos que te admiravam.

Teus discursos só ecoaram no teu presente,

Porque o futuro  te renegou nos corações dos jovens,

Cheios do sangue vivo de liberdade.

General, teus joguetes foram planos precários

Como as placas das ruas que levam teu nome

Mas permaneceram conhecidas pelas alcunhas dadas pelo povo:

Rua da Luz, Beco da Esperança, Alameda dos Desvalidos...

Não percebias que a história contada por teus escribas era esclerosada

E que os seixos da estrada brilhariam para sempre as vozes lúcidas do passado?

General, a alma do homem é inalienável.

Podias convocar teu exército de mercenários,

Exigir verdades inventadas;

Podias chamar de bem a ignomínia que realizavas;

Mas não tiveste o poder de despertar a primavera!

Amaldiçoado estás pela cegueira eterna

De onde só enxergavas o vil metal.

Condenado estás a não sentir

Pois incapaz foste de acalentar-te pelo amor de um filho.

***

General, já nem lembram teu nome

 - Tua placa fora arrancada!

Estás ao relento, sob sol e chuva,

À mercê dos pombos, que não respeitam tua patente.


Hérlon Fernandes Gomes

Guajará-Mirim, Rondônia, 22 de Setembro de 2011 - Madrugada.


segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A felicidade breve é também felicidade



O que eu tinha feito com aquele desejo guardado e empoeirado? Percebi que ele não estava tão escamoteado ou irrecuperável quando bati os olhos novamente em ti.

O tempo nos uniu novamente sem que para isso precisássemos de esforços. Agora, nada poderia criar barreiras entre esses desejos impublicáveis do passado. Teu coração já não tinha mais dono. Éramos agora nós, um diante do outro, com tão pouco tempo para compensar esse passado de hibernação.

E foi tanto medo de que essa ânsia só me pertencesse. Enfrentei os teus olhos porque já não éramos ilegais. Agora era tão bom não ter de fugir deles; era tão bom sondar teus pensamentos, imaginá-los como pares dos meus desejos.

A noite foi longa até restarmos apenas nós dois e a manhã batizando o nosso primeiro beijo. Fecho os olhos por alguns segundos para poder captar esse momento: meus dedos entre teus cabelos, o gosto bom da tua boca, os nossos desejos nos queimando...

Lulu Santos nos mandava “nos permitir” e assentíamos para essa oportunidade que se nos oferecia. E, calmo, olhava para ti, simplesmente por olhar para compartilhar meu sorriso mais verdadeiro ao teu lado.

Na cama, nem imaginava que éramos tão íntimos, que conhecerias tão bem os caminhos do meu tesão absoluto, que te entregarias a mim como alguém que eu conhecesse os mistérios mais sublimes de comunhão.

E vimos estrelas. E conversamos. E não veio o sono.

Foram três dias de saciedade de uma sede enorme. Eu bem queria poder te beber todos os dias... Mas respeito o encanto da Cinderela e aceito voltar para o borralho, onde eternidade é apenas essa saudade palpável que sinto de nós dois, ao brinde de vinho, beijos,  Maria Bethânia e nossos corpos elaborando a alquimia da paixão.

Volto para casa feliz. Nada de desilusão, nada de desalento, nada de esperanças que me façam sofrer. Foi desejo liberto o que vivemos. Eu me banhei de luz em ti, eu me senti vivo nos teus braços, na hipnose maciça dos teus olhos castanhos.

Culpa? A culpa maior seria ter rejeitado essa oportunidade que a Vida nos pôs de bandeja. Escrevo isso para eternizar, para que o futuro mais na frente não queira me enganar e dizer que tudo não passou de um sonho.

A felicidade breve é também felicidade. Ela não perde a plenitude quando nos assoma como a rapidez de uma estrela cadente.

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia, 05 de Setembro de 2011.

P.S.: Entrei Setembro no Cariri contaminado de primavera.



terça-feira, 23 de agosto de 2011

A PAIXÃO E A RAZÃO




A RAZÃO pousou-me no ombro esquerdo; a PAIXÃO acostou-se no outro. A primeira me prometeu a tranquilidade de uma passagem monótona, sem sensações inesquecíveis, mas itinerário certo; a segunda, embora me traçasse labirintos e abismos de perigos e incertezas, sem placas e marcos que indicassem uma direção de Norte, fez-me sentir invadido por um formigamento luminoso de emoções e gozos de Vida. A quem dou ouvidos?

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia, 23 de Agosto de 2011.

P.S.: O eterno drama inconciliável... Como servir bem a essas duas Senhoras?

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O BÚZIO



O BÚZIO


Estou a desenhar na praia minhas alegrias presentes,


Estou a adivinhar no horizonte um futuro de paz.


No naufrágio não afoguei minhas esperanças,


Embora confundisse o sal da minha lágrima no do infinito oceano.


Daquelas profundezas  ficaram lembranças quase esquecidas,


Desbotadas pelo calor do sol,


Encantadas pela luz de refrações enluaradas.


Sou eu agora ao acaso,


Nessa imensidão de enseada,


Ansioso por ser  escolhido


Por um olhar especial


Que me aceite singular


E me tenha por amuleto da sorte.




Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia - 28 de Julho de 2011.


P.S: Para meus irmãos: Hércules, Helaine e Heloísa. Na infância, maravilhados com a quantidade de búzios gratuitos pela praia, perdemo-nos dos nossos pais, quando escolhíamos e catávamos conchas por quilômetros distraídos.

domingo, 24 de julho de 2011

EPITÁFIO A AMY WINEHOUSE (A ÚLTIMA CANÇÃO)

 

EPITÁFIO A AMY WINEHOUSE (A última canção)


Dirão dos meus excessos:
Do amor sem limites
- Maior que a mim mesma;
Do inconsequente coração
A ser fiel só a si...
Dirão de mim nos bares das madrugadas,
Num copo de uísque,
Numa desilusão sem amparo,
Num luto d’alma...
Mijarão sobre as flores do meu túmulo,
Vilipendiarão meus ossos e venderão aos hippies,
Dirão mais mentiras que verdades ao meu respeito;
Mas das minhas verdadeiras dores só eu as soube:
Distribuídas como caprichos vagabundos de um coração-kamikaze.
Não me reverenciem,
Não me sigam...
Precisei  de todos para dar vazão às minhas dores,
Precisei publicar-me porque não me continha.
Agora o luto só me pertence,
Só a mim ele é definitivo.



EPITAPH – AMY WINEHOUSE (The last song)


They will say of my excess:
Of love without limits
- Greater than myself;
They will say of the reckless heart
Loyal only to
 itself ...
They will say of me among late nights on bars,
In a glass of whiskey,
In a disappointment without support,
In a black of soul ...
They will piss on the flowers of my grave,
Steal my bones and sell them to the hippies.
They  will tell more lies than truths about me;
But of my true pain, just I
 would know:
Distributed as vagabonds vagaries from a kamikaze-heart.
Do not idolize me,
Do not follow me ...
I needed everybody  to vent my pain,
I had to publish me because I was not contained me.
Now, the black  just belongs to me,

Just to me it´s final.

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia - Brasil
23 de julho de 2011.

P.S.: Amy Winehouse foi uma poetisa contemporânea ultrarromântica, do quilate de Florbela Espanca, Arthur Rimbaud, Kurt Cobain, Jim Morrisson, Janis Joplin, Cazuza, Renato Russo... e tantos outros que amaram o amor mais que a si mesmos. Salve Amy para sempre! Forgive me for any errors in translation to english. It´s  writed originally in portuguese.





sábado, 16 de julho de 2011

Intimidade com o silêncio


Em meu silêncio, meu íntimo cantarola a melodia de um fado desconhecido e reaviva emoções tão minhas, esquecidas no rastro de uma distância continental onde elas nasceram. Respiro fundo, como impulso para que a vida me responda que está instalada em mim, para que me lembre o pulsar do meu coração, cheio do peso abstrato dessas lembranças felizes.

Olho o calendário, conto os dias... Essa fraqueza de querer voltar para casa, como se ainda não estivesse pronto a sair do ninho, mesmo com asas tão fortes...

Quando nos sentiremos efetivamente prontos para a vida? Quando, o que temos, o que somos dará a sensação de que já  é o bastante?

Tenho sedes intermináveis: do amor inconcreto e raro; da compreensão mútua dos homens. Fecho os olhos e me tenho diante do mar. Pelo horizonte, entrego meus anseios ao sabor das ondas, como mensagens em garrafas a itinerários desconhecidos, onde o portador me compreenda e talvez me resgate dessa ilha de mim que me mantém.

Neste sábado silencioso, quando a solidão se torna minha fortaleza, miro o céu, na sua profundidade mais azul de dia, e Deus me responde que nessa distância insondável não existem apenas planetas e estrelas, que minhas orações não desembocam num buraco negro do acaso.

Hérlon Fernandes Gomes

Guajrará-Mirim, Rondônia 

16 de Julho de 2011.

P.S.: Fotografia de contemplação do mar cearense.




segunda-feira, 20 de junho de 2011

MISTÉRIO DE UMA NOITE DE SÃO JOÃO



Foi o São João de 1992. A casa estava cheia. Todos os filhos, todos os netos. No terreiro, homens se empenhavam em aumentar ainda mais a pirâmide que seria a fogueira de logo à noite. Na cozinha, fervilhavam caldeirões com pamonhas; titia Alice batia ovos para bolo de pão-de-ló; a empregada Maria embriagava-se escondida nos preparos do quentão e do leite-de-onça; nós, as crianças, contávamos o arsenal de bombas, traques e chuvinhas que explodiríamos mais tarde; vovó, filhas e netas cortavam papel de seda para a confecção de correntes e bandeirolas que adornariam o terreiro; a velha vitrola animava o ambiente com forrós de Luiz Gonzaga...

À noite, apontou a orquestra de zambumbas, sanfonas e triângulos. Fogos estouravam no ar. A fogueira começava a arder. Uma quadrilha improvisada formou-se.

Para mim, o São João sempre foi uma das melhores festas do ano. É o carnaval sertanejo. Mas, a parte que eu mais gostava era um momento cheio de mistério que só os corajosos topavam. Não se tratava de explodir a maior bomba, não se tratava em pular a fogueira no auge de suas chamas... Tudo isso tinha lá a sua diversão, porém o que mais me chamava à atenção era o momento da bacia branca.

Acho que esse oráculo não é um feitio apenas do Cariri, o fato é que no sítio dos meus avós, sempre foi uma tradição. Consistia no seguinte: quando a fogueira estava com as chamas já vacilantes, o suficiente para se conseguir aproximar dos torrões de brasas, enchia-se uma bacia branca virgem com água e posicionava-a o mais próximo possível do fogo brando. O ritual consiste em ajoelhar-se perante a bacia e enxergar o próprio rosto. Reza a lenda que quem consegue realizar a façanha, enxerga, na verdade a face da própria alma no futuro e, portanto, estará vivo no ano seguinte para contemplar mais uma festa de São João.

Superstições à parte, muitos não tinham coragem de participar do oráculo. O velho Otílio, por exemplo, naquele ano já contava com mais de oitenta e cinco anos e resolveu não querer saber mais se ano que vem estaria vivo ou não, preferia a ignorância. Meu pai foi o primeiro a encarar o desafio e ,dentre em poucos segundos, levantou-se anunciando que se viu claramente. Minha mãe repetiu a façanha, seguida de todos os filhos. Vovó Hozana, sempre muito supersticiosa, dispensou o desafio, preferia não saber. Tinha medo de ficar "impressionada". Vovó perdeu o pai em tenra idade, vítima de um infarto fulminante quando aquele contava apenas trinta anos de idade, deixando viúva a mãe com cinco crianças pequenas. Ao pé da fogueira ela contava aos netos que viu o pai angustiado por não ter conseguido enxergar o próprio rosto um ano antes. Ele morrera no mês de maio do ano seguinte, um mês antes do São João, cumprindo o prognóstico do oráculo... O relato de vovó despertava histórias parecidas de gente que se juntava para contar também seus dramas íntimos. Até que, percebemos que faltou vovô se olhar na bacia. Meu pai incitou-lhe: “Oxente, Seu Zé, tá com medo da Morte?”.

O velho Zé Milagres era um leão forte, de inspiradora segurança e não gostava de ser desafiado: “Pra quem já viveu oitenta anos, o que é um ano a mais ou a menos?” Ajoelhou-se, franziu o cenho, virava a cabeça para um lado, para o outro, cobria a testa em busca de uma sombra ante as brasas para que facilitasse o reflexo... Debalde. Levantou-se, sacudiu a poeira dos joelhos e anunciou, firmemente, sem emoção alguma: “Não me vi.”

Houve um silêncio de poucos segundos, até que minha mãe partiu em seu socorro, a desacreditar o oráculo: “Papai, que besteira! O senhor não enxergou porque exagerou na bebida!”

Embora em pouco tempo a preocupação tivesse se dissipado diante de todos, afinal, a sanfona animava o terreiro, não deixei de perceber que vovô sondava o próprio íntimo durante toda a noite.

Acordei-me durante a madrugada. Fazia um frio imenso, de bater os dentes. Só se escutava o coaxar de sapos e o cri-cri dos grilos. Levantei-me agasalhado com uma manta. Percebi que a porta da frente estava aberta. Rumei até a entrada da casa. De lá, vi vovô ao pé dos restos de fogueira, remexendo com um pedaço de pau os tições anêmicos. Cheguei perto: “O senhor está acordado sozinho até essa hora?” Ele pediu-me que me concentrasse na música que o vento fazia quando tocava umas palmeiras de que ele muito gostava. Mostrou-me a Estrela d´Alva no céu, piscando como um diamante multicolorido. Disse-me que a vida é muito boa, só não se pode é perder a esperança.

Ficamos nós dois, velando a madrugada, aproveitando o calor da fogueira que ia se esfacelando aos poucos, espalhando-se em cinza pelo vento frio que vinha do Sul. Os galos despertavam o sol de mansinho...

Fiquei com essa frase de vovô até hoje na memória: “A vida é muito boa, só não se pode é perder a esperança.”

Vovô faleceu em 18 de Junho do ano seguinte, dias antes da noite de São João.

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim, Rondônia, 18 de Junho de 2011.

P.S.: Para vovô Milagres, que há muito tempo deixou de me aparecer em sonhos, mas é uma lembrança recorrente de saudades felizes.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Devaneio tropical em Paris


Aquele a caminhar timidamente entre os cafés da Rue Du Champs é Antônio. Ele prefere dias como este, de neblina fina a tornar cinzenta a atmosfera parisiense. Em dias assim, consegue ser mais imperceptível debaixo do impermeável oleado e sob o chapéu panamá. Ele lembra uma estampa conhecida do poeta português Fernando Pessoa.

Senta-se sozinho a uma dessas mesinhas discretas. Acende um cigarro e pede um expresso grande. Há casais apaixonados na festa de Paris, enquanto ele se amofina pelos cantos, a viver de inquietas suposições e desejos que não se corporificam do acaso.

Antônio procura uma novidade. Já perdeu seus vinte anos, já perdeu o magnetismo adolescente que lhe conferia o viço inovador. Poderia se embriagar de gozo entre beijos encomendados de uma trottoir, mas isso não inundaria sua sede, isso só desolaria mais ainda suas expectativas , pois nenhuma dessas pobres mulheres lhe dariam o gosto esquecido de coisas sublimes.

Recebera uma carta do Brasil. Nela, sua mãe conta de uma saudade inquietante, dando notícias de que as samambaias amarelaram e definharam pela falta dele.

Ele se concentra no amargo do café. Também sente saudades do Brasil, sente falta de tanta coisa... Pensa que na sua vida a sensação mais constante é sentir falta de emoções que não tocam mais sua alma com a mesma intensidade, com as mesmas nuances. Um coração uma vez habitado por um amor arrebatador jamais se acostumará à monotonia vazia de depois do fim.

Antônio gostaria de saber se se entregaria com o mesmo devotamento, se cegaria seus olhos e cairia nesse abismo apaixonado, sem se envergonhar em ser ridículo. O que ele faria com todas essas súplicas e carências exigidas por sua alma? Agradar à carne era fácil, mas sua alma era por demais exigente: não se contentava com uma rosa, queria uma primavera inteira.

Alguém lhe respondesse, por favor, se essa era uma inquietação mesquinha apenas dele, ou toda gente, em seus sonhos, está a suplicar por um amor que ilumine lacunas mudas de solidão.

Guardava para si esse melodrama, embora Piaf desfiasse no rádio o que ele um dia sentiu e desejou que fosse para sempre. Era a resposta à pergunta de outrora? Não era muito animador acreditar em destino.

Seu coração estava congelando naquele inverno parisiense.

No Brasil fazia calor. O Brasil era um lugar distante, era uma fotografia guardada na sua carteira, era um emaranhado de emoções que ele gostava de se embalar recordando. Talvez a saudade de lá fosse maior que as exigências de paixonites do seu coração. Talvez fosse tempo de retornar, talvez a vida fosse feita mesmo de compensações de emoções, numa equação em que a ausência de um amor tórrido devesse ser suprida pela saudade saciada do lar.

No Brasil, seu coração talvez volte a ser tropical.

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim/RO, 04 de Maio de 2011.

Para a amiga Rachel Alves Gomes, que de longe tem me irradiado energias felizes de libertação e recomeços.
Para meu amigo Danton, irmão de Rachel, que é um sol de alegria, mesmo por trás de qualquer nuvem cinza incômoda.


terça-feira, 29 de março de 2011

PAULO CORDEIRO SALDANHA - A AMAZÔNIA SOB SUA PENA

               “Maktub”. “Está escrito”. Oh, doce mistério esse de estar vivo! Quais oráculos irão desvendar os segredos dessa travessia nossa, desse pulsar de emoções da Existência?
               Nunca em meus planos esteve a imagem de poder morar na Amazônia brasileira e, no entanto, cá estou, na fronteira deste Brasil, cercado de rios e de uma biodiversidade que exalam o cheiro do barro cru há pouco moldado por Deus. É essa sensação de pequenez humana e de expansão espiritual que me inundam todo.
               Em derredor a essa profusão viva, enraízam-se histórias de homens e mulheres que aceitaram o desafio de participar dessa simbiose nem sempre tão harmônica com a selva e que nos legam enredos dignos de deixar invejosa a Sherazade, com assunto para mil e uma noites.
               Hoje, tive a graça de conhecer pessoalmente uma admirável personalidade deste Vale do Guaporé: o escritor guajaramirense Paulo Cordeiro Saldanha.

               Aqui, no estado de Rondônia, ele é um nome que dispensa apresentações, por vários outros atributos que lhe lauream. Mas, neste espaço, gostaria de prestar uma singela homenagem ao homem que dedica suas letras para enaltecer a merecida realeza de sua terra.
               O Jornal “O Mamoré”, periódico de vida perene nesta cidade, é um veículo importante para a integração social e até moral do município. Foi da leitura de “O Mamoré” que partiu minha admiração por Paulo Cordeiro Saldanha, responsável pela coluna “Crônicas Guajaramirenses”. 
               Detentor de um espírito saudosista, o escritor ali imprime reminiscências remotas, contando episódios corriqueiros e enaltecendo personagens que não podem padecer no baú do acomodado esquecimento.
               Maior foi meu deslumbramento ao me deparar, numa livraria, com um romance escrito por esse guaporense!
               O gênero romance é um texto extremamente difícil de se encarar; é um trabalho que, na sua maior parte, exige mais transpiração e paciência que inspiração. Poucas são as cidades a terem o orgulho de possuir um filho romancista. Pois bem, Guajará-Mirim o possui!
               Adquiri, então, O Oráculo da Candelária, última publicação do autor, e embrenhei-me pela leitura desse romance, cheio dessa cor-local amazônica, coroado pelo enigma íntimo a unir Nilton e Melina, personagens dessa trama universal, nascida no espaço europeu e ancorada na exótica Amazônia rondoniense, palco para mistérios cármicos esboçados por uma força sobre-humana, aos auspícios do Criador.

               Entre a troca de e-mails, tive a honra de ser convidado pelo escritor para um “café literário”, às margens do rio Pakáas Novos, que se estendeu por um almoço até a tarde toda, quando o tempo não foi desperdiçado por nenhum hiato de silêncio, haja vista a constante e agradável conversa que nos envolveu.

               O Sr. Paulo Saldanha, além de extremamente bem-humorado, é uma enciclopédia-viva desta porção de Brasil – não obstante seus conhecimentos universais. É um amante fervoroso de sua história, de sua família; é um devotado discípulo da literatura, pela qual se utiliza como instrumento para partilhar com todos de suas vivências e impressões de sua terra.
               Despido da vaidade que macula de pedantismo alguns intelectuais, o Sr. Paulo, este admirável “contador de histórias”, carrega a impressão verídica de uma alma generosa, que busca aquilatar a cultura municipal aparentemente (?) negligenciada pelos poderes públicos constituídos.
               Voltei para casa mais cheio de amor por esta terra que me acolheu tão bem e que a cada dia me põe no caminho a oportunidade de conhecer grandiosas pessoas. De lambujem, fui presenteado com o primeiro romance do autor, O Alferes e o Coronel, que traz como personagem principal  um conterrâneo cearense, de Canindé,  conhecido coronel da história de todo o Norte do País.

               Deus continue a lhe render essa abençoada inspiração, Sr. Paulo, e nos conceda o presente de poder desfrutar de suas histórias por muito tempo, ao sabor de sua prosa de deliciosa leitura. A cultura agradece!

Hérlon Fernandes Gomes
Guajará-Mirim/RO, 28 de março de 2011.

sábado, 26 de março de 2011

O outro lado do espelho


Era um ritual secreto que se iniciara na infância, quando contava dez, onze, doze anos de idade, talvez. Trancava-se no banheiro, subia e sentava-se na pia para mirar-se no espelho. Não sabia bem o motivo de fazê-lo escondida dos outros; certamente porque não teria uma desculpa para quem a surpreendesse diante daquele ritual inusitado.

Quando se observava, não procurava enxergar simplesmente o superficial. Era uma atitude para se reconhecer. Afirmava em som audível para si: “Eu sou eu. Meu nome é Alice.” Invadia-se por uma sensação indescritível de existir, de participar da vida. As respostas vinham como ondas de arrepios elétricos pelo seu corpo. “E por que ela nascera? E por que ali, filha daquelas pessoas, irmã dos seus irmãos?”, “Por que sua vida era assim?” Na maioria das vezes era retirada do transe por alguém que precisava usar o único banheiro da casa.

Quando estava sozinha, era bem melhor; podia continuar seu ritual no espelho do quarto dos pais. Era enorme, com grossa e antiquada moldura em madeira. Ali, além de se questionar, desafiava o próprio reflexo, não muito convencida de que a imagem refletida correspondia à realidade. Fugia da imagem central, depois voltava de vez para certificar-se de que se tudo acontecia tal qual ela gesticulava.

O tempo foi passando, e no fundo do espelho, sabia que podia contar com uma amiga secreta, nem sempre com a razão absoluta para todas as coisas, mas bem mais cheia de vigor e autoconfiança que a Alice do lado de fora.

Quando a tristeza era desoladora, e desembocava num rio de lágrimas, corria para frente do espelho e passava a escutar os conselhos que a outra lhe ditava. Geralmente aquela lhe ria da fraqueza, xingava o seu melodrama, seu medo de encarar as pessoas e as emoções que o mundo exigia que ela desfrutasse. De outras vezes, obrigava-a a esbofetear o rosto, como sinal de punição para sua fraqueza e covardia. Resolvia? Resolvia, sim. Só conseguia adormecer quando prontamente disciplinada pelo outro eu que habitava o vazio-cheio do espelho.

Quando se apaixonou por Beto, passou a viver um drama inconciliável com a Alice “de dentro”. Esta acusava-a de submissão cega, de falta de amor-próprio, de imbecilidade; tachava-a de ridícula até que, humilhada, resolveu esquecer o ritual. Era simples: bastava não se questionar diante do espelho, senão a outra, a intrometida, procurava instituir um império de razões e desaforos.

Eis que veio o fim do namoro. Beto estava cansado, não queria mais se sentir preso a ela, também era melhor ela não querer saber os porquês, acabaria se magoando ainda mais...

 Voltou para casa sem alma. No quarto, acendeu a luz. Diante do espelho, teve dez segundos para sentir pena de si mesma, até que a outra reapareceu, também com os contornos sérios, como se jogasse no âmago os argumentos que comprovassem a falibilidade da Alice “de fora”: “Você precisa morrer!” 
 
Ajoelhada, convencida de que a outra tinha razão, chorava como uma condenada a expiar uma pena que não merecia. Chegou mais perto do espelho e ali, tocando a superfície gelada do vidro, sentiu-se transportada para o interior daquele espaço, onde tudo era inquietantemente surdo. Sentiu uma inédita aflição, enquanto a outra, antes “de dentro”,  ameaçava-a com um sorriso de vingança. 

Agora livre, dirigiu-se até a janela do "seu" apartamento. Que sede de liberdade! Respirou fundo. Constatou que do quinto andar até o solo era uma altura considerável. Retornou ao espelho. Retirou-o com pressa da parede e volveu ao vento frio da madrugada. Como percebesse não haver transeuntes àquela hora da noite, lançou-o com vigor até o centro do asfalto. Lá embaixo, espatifada em cacos, jazia uma Alice que nem merecia ser lembrança.

Hérlon Fernandes Gomes
21 de março de 2011
Guajará-Mirim-RO