quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

ESTRANHEZA ILUMINADA


Ela chegou a uma conclusão iluminada: “Você não me pertence mais.” Estranha constatação. Seria triste? Era, ao menos, cheia de alívio.
Agora se pegava investigando a si mesma e percebia que não era nada confortável a sensação de alguém lhe pertencer. Sentiu-se leve, cantarolou uma canção de sua juventude: "Leve, como leve pluma muito leve, leve pousa. Muito leve, leve pousa..." Soltou todo o ar dos pulmões como se expelisse todo o enfado que a incomodava.
Começou a elaborar na mente uma lista de coisas que preencheriam de felicidade o vazio deixado pelos anos que dedicou ao ex-marido: ler bons romances, ouvir mais música, cuidar melhor do seu jardim, viajar mais... “Ex é pra sempre”. O que a amiga quis dizer com isso? Ele seria apenas como a presença de fotografias sepultadas em álbuns esquecidos... Viveria seu resto de tempo sem se lamentar, sem se incomodar como ele resolveria tocar seu barco pra frente. Só tinha medo de uma coisa: querer amar novamente. Ai... essa possibilidade dava calafrios em sua espinha, uma ansiedade incômoda, um pensamento que ela imediatamente tratava de descartar, de fugir. Já não havia mais tempo, já não conservava no rosto o viço que o amor exigia. “O amor não conhece idade, credo, cor, sexo.” Novamente a voz da amiga a contradizer suas ideias mais confortáveis... Poderia preencher esse sentimento com outros; afinal não se pode amar apenas de uma forma. Tinha os filhos para quem ainda poderia ligar, passar as férias, já tinha até netos... “Chegará um momento em que as plantas do jardim já não serão companhias tão vivas”. Ai, também essa amiga não ajudava em nada... Queria provar que Jobim estava errado: deve ser possível ser feliz sozinha... Seria? Pelo menos não tinha medo da solidão, só não gostava do silêncio. O silêncio dava margem para que se perdesse nesses pensamentos insólitos. Despertou do devaneio com o enroscado e o miado de Josephine em suas canelas. Eram somente as duas agora; mas Josephine tinha o privilégio de não se questionar.


Hérlon Fernandes Gomes
09 de dezembro de 2009.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O CANTO DO VIM-VIM




Como exigir do Tempo para que faça com que as goiabeiras frutifiquem mangas? Como exigir do mar que sua água escorra doce pela praia? Seria a mesma coisa exigir de si mesma que esquecesse de sentir seus pesares de amor, que usasse a frieza da razão quando o coração era todo o seu império; quando seu combustível era todo esse fogo que a consumia e ao mesmo tempo era sua luz de encantamento.
Mesmo que ela sofresse depois, mesmo que ela terminasse o final de sua jornada rememorando planos fracassados, ainda assim sentiria que aquele tempo vivido teria valido a pena, porque se sabia convictamente impotente diante do controle das emoções dos outros.
Sabia amar por si mesma. Às vezes cometia o triste engano de querer amar pelos dois. Sabia a poesia do que sentia; mas continuaria sempre cega diante do que ofertava aos homens, porque ninguém pode querer dirigir o destino do coração de outrem e, por isso, seria impossível precisar numa balança as grandezas do amor de quem ama e de quem é amado. Ela poderia muito bem tocar sua vida pra frente sem querer conhecer a exatidão dessas respostas.
Sentia que vivia uma frustração pelo fim da primavera de um amor. Haveria um amor-paixão pleno de um ser humano para com outro? Haveria esse desejo permanente de se integrar numa simbiose de almas? Seria justo pedir a Deus que isso acontecesse em sua vida? Quando se atordoava assim por essas questões sem respostas imediatas, apenas um café forte e meio amargo acordava-a desse coma sentimental...
Não nascera para se acostumar em castrar o que sua alma teimava em sentir, por mais que lhe dissessem que ela poderia pintar sua aquarela com outras nuances... Não! Ela nascera toda feita de amor; ela era toda sentimento e jamais poderia arruinar seu coração com os ditames frios da razão. Não! A água que saciava sua sede não podia ser bebida simplesmente nas fontes que lhes prescreviam. Não nascera para viver da receita dos outros, porque conhecia seu próprio mecanismo, porque não se fartaria em mapas que lhe prometiam falsos tesouros. Intimamente, esquecer de amar equivaleria a um sacrilégio para sua essência. Era simples ouvir dos outros mirabolantes conselhos; era fácil na boca dos outros a solução pros seus dilemas imateriais...
Terminou o café e recebeu uma visita incomum: o pássaro Vim-Vim entoava seu canto misterioso no alto de uma goiabeira... “Como exigir do Tempo para que faça com que as goiabeiras frutifiquem mangas?”
No Cariri, há uma crença acerca do canto dessa ave. Dizem que o Vim-Vim carrega no seu canto notícias boas ou ruins. Resta a quem o escuta, questioná-lo: “se for notícia de bem, fique; se for notícia ruim, vá embora.” Intimamente questinou ao Vim-vim se seriam boas as notícias para seu coração. O pássaro se demorou por quase todo o fim da tarde a desfiar-lhe augúrios de boa sorte...
Era dela se encher de esperanças. É de quem ama demais querer acreditar que, amanhã, uma emoção melhor que a de hoje animará melhor a festa de seus sentimentos mais caros.
Ela nascera para acreditar em anjos, fadas, na voz do coração e também na sorte trazida no canto de um Vim-vim.


P.S.: Aos que amam demais.


Hérlon Fernandes Gomes

sábado, 7 de novembro de 2009

MIGALHAS



Sentia-se diferente dos outros, como se tivesse sido forjado de uma matéria diferente dos outros humanos, como se nele pulsasse um espírito não tão comum nessa selva de tantos cegos. Era tão inexato que qualquer tentativa de explicá-lo acabava no devaneio, em rascunhos que pouco sugeriam; mas bem no seu íntimo habitava uma essência comum. Ali ele se refugiava, ali ele alimentava os desejos que poderiam completá-lo, os argumentos que finalmente pudessem explicá-lo diante dos outros.
O que esperava do mundo? Esperava tantas coisas... Que Deus se compadecesse de seus sonhos e enchesse seus caminhos de primaveras, mesmo quando os tempos chorassem tempestades de desolação.
Naquele dia, sentia que a solidão estava embaçando a transparência de sua luz. Não tinha reparado muito bem, mas agora descobria que fome era aquela, que sede era aquela, que inquietação era aquela que lhe pertubava o íntimo.
Resolveu sair sozinho, procurar um bar e exercer sua filosofia de boêmio, ouvindo sua história ser cantada na voz de quem também amou demais. Amou demais? Ás vezes ele tinha dúvida se amara demais... Queria que sua esperança tivesse razão e provasse que aquilo não fora amor. Amor desacredita a gente? “Só mais uma dose...” Sentiu falta de uma quentura, de uma cumplicidade, de uma palavra que pudesse servir de parâmetro para suas escolhas, que pudesse dizer que o seu velho jeans precisava ser aposentado... Saudade de um perfume, saudade de toda uma existência que ele cismava em acreditar que não se construiria como imaginava...
Do outro lado do bar, uma moça o observava. Parecia sozinha. Sozinha como ele, de lábios sem dono, de alma livre, calores solitários...  Ele se aproximou, fez um comentário qualquer sobre a música que tocava, ofereceu uma bebida. 
Não agiriam como estranhos naquela noite. Teriam piedade de si mesmos, criariam uma atmosfera de intimidade que lhes permitisse montar a cumplicidade que tanto desejavam. Dividiriam suas químicas, enganariam seus próprios corações com mais um amor descartável, com aquela felicidade que se rasga assim como a cigarra, de uma vez só.
Haveria um nome para relembrar? Ainda tinham esperanças de que as migalhas um dia se transformassem em banquete; sonhavam que alguém cantasse o final de suas histórias de uma maneira mais feliz. 
Dormiriam abraçados, como se se conhecessem de outras vidas.


Hérlon Fernandes Gomes




sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Diário de viagem


O que fazer quando se está sem inspiração? Só escrevo inspirado... Viajei esses dias, na tentativa de que algo novo me fizesse trazer uma nova cor às palavras. Encontrei lugares lindos, vivi momentos únicos, mas a palavra não é capaz de dizer a emoção do que vivi; não é capaz de corporificar o que gostaria de escrever.
Sinto-me impotente, procurando uma linguagem que só fala intimamente na alma de cada um de nós: uma energia que se compara a quando a gente se arrepia de felicidade; quando a gente fica surpreso demais com um presente perfeito e, de tão bobo, não consegue agradecer à altura. Estou transbordado até então, cheio de uma ressaca de paz que me sufoca a escrita. Resolvi postar a fotografia para que me perdoem a incompetência de poeta.


Hérlon Fernandes Gomes




P.S.: Fotografia tirada em Barra Nova, praia do litoral leste cearense pelo amigo fotógrafo Aragão, que registrou perfeitamente a atmosfera muito além do que as palavras poderiam dizer.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

NO DIVÃ



Doutor, meus amigos enlouqueceram e eu ainda duvido se minha lucidez também não está corrompida. Sim, continuo seguindo suas recomendações. Não, eu não estou deprimido... Angústia é depressão? Angústia de hoje não saber se estou sentindo as coisas da maneira como deveriam ser sentidas. É, eu sei que o coração e o espírito não precisam de um manual de instruções; eu sei que preciso descobrir, em minha fraqueza, a minha fortaleza... Eu só não queria estar obrigado a ter de ser feliz como todo mundo, doutor. É por isso que estou aqui. Minha felicidade exige tão pouco de mim... Não preciso do muito deles para que meu sorriso seja sincero...

Sabe, doutor, continuo a sentir aquela podridão no ar. Ela se desprende de algumas pessoas e isso tem se tornado cada vez mais frequente e insuportável. Eu desconfio que essa fedentina tem mortificado parte das almas do planeta. O senhor também não percebe que algumas pessoas, além de empestarem o ar, têm perdido uma certa luz dos olhos? Claro que naõ comentei isso com mais ninguém! Eu sei que isso parece loucura... Esta semana estive no banco e vomitei ali, na frente de todos, porque a carniça sufocava-me. Sei que o senhor tem me proibido de visitar bancos, mas no mundo de hoje... Ali parecia um açougue de carnes apodrecidas... Outra coisa inusitada tem acontecido. Agora passei a enxergar os sonhos mais ambiciosos deles, doutor... São coisas tão mesquinhas que eu me envergonharia de contar ao senhor. São sonhos de esperanças apodrecidas, porque deixaram se transformar simplesmente no que podem comprar. Quando seus ideais não são atingidos, já sem alma, se transformam em zumbis e passam a viver numa espécie de limbo, atormentados por medos sem porquês, onde tudo perde o sentido. Percebo que alguns, doutor, resgatando um fio de esperança e fé, despertam do transe e reencontram o prumo.

Sigo à risca as suas recomendações para não me tornar um deles. O cheiro dos cajueiros de setembro tem me ajudado a dissipar esse cheiro ruim; as acácias em flor alimentam mais e mais a luz que me põe em equilíbrio comigo mesmo; nos momentos de solidão e medo, entrego minha alma a Deus e rezo. Tenho bebido algumas estrelas na madrugada e me banhado nu no olho nascente das águas – tudo clandestinamente, doutor! Se eles souberem que ando fazendo essas "maluquices", mandam me internar...


Hérlon Fernandes Gomes

10 de setembro de 2009.


domingo, 16 de agosto de 2009

BATISMO

Ele caminhava sozinho pela praia deserta. Era cedo da manhã, os raios mais quentes do sol se anunciavam timidamente entre um vento mais frio, entre nuvens que serviam de cortinas que se abriam com o passar das correntes de ar.

Abaixou-se para pegar um búzio entre tantos, guardou-o consigo... Demorou-se um pouco mais para sentir aquela quentura viva do sol em suas costas a denotar essa sensação de existir. Eram coisas tão simples e ele muitas vezes estava alheio, preocupado em sentir o que não lhe pertencia, em aceitar as cores que escolhiam para sua aquarela... Não, ali diante do mar ele reconhecia sua pequenez, mas não se inferiorizava. Ninguém lhe diria como distribuir suas emoções, porque ele era livre para sentir e talvez tivesse a mesma sorte daquele búzio: escolhido ao acaso, reconhecido até mesmo pela beleza singular de suas imperfeições.

Certificou-se de que não havia ninguém por perto. Queria sentir o gosto mais puro da liberdade. Tirou as poucas roupas que vestia e correu para o mar, para que o sal arrancasse as frustrações diárias que ele não desejava colecionar. Gostou do frio, gostou de sentir bater os dentes, pois bem ali, na praia, o sol seria o seu melhor conforto. Deitou-se na areia. O céu azul encheu-lhe as vistas. Fechou os olhos e recebeu da Vida o bronze abençoado sobre seu corpo livre, seu corpo nu, seu corpo limpo, seu corpo santo.

Hérlon Fernandes Gomes

16 de agosto de 2009.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

O PERFUME


Já ouvi de muitas pessoas a unanimidade de que as fotografias, o perfume e a música são os maiores eternizadores de lembranças. Estou há alguns dias com um perfume que me desenterra momentos tão bons... Aí vem você e me diz que quando gostamos de um perfume não devemos forçar muito a memória para relembrar seu aroma; mas sim, devemos buscar a fonte. Simples, não?
Seria simples se tudo o que desejássemos estivesse ao nosso alcance com um estalar de dedos, ou se não houvesse nenhuma distância incômoda a nos separar nesses quilômetros angustiantes. Seria simples se seu passado não retornasse e impedisse que vivêssemos nossas emoções; se você não tivesse medo de pronunciar meu nome proibido enquanto dorme ao lado de quem desconheço.
Mas seu perfume ainda insiste em reconstruir todos os seus detalhes. Ele se entranhou até mesmo em minha garganta, nos soluços que me engulo ao me lembrar das nossas volúpias, da profundidade oceânica dos seus olhos, da maciez aconchegante da sua pele quente...
Quisera também fosse simples poder camuflar esse cheiro que me retorna; todavia ele é único, nenhum perfumista conseguiu sintetizá-lo nem ninguém trará consigo a mesma variação. Então, minha mente me enlouquece relembrando-o, procurando em mim esse feitiço que você me deixou pela língua, encravado nos meus poros, nas minhas amígdalas, no meu sexo, na minha insônia...
Vou até o jardim. Lá, procuro destrair-me entre aromas de flores que nem de longe trazem o conforto do seu perfume.

Hérlon Fernandes Gomes

Brejo Santo – CE
23 de julho de 2009.

sábado, 20 de junho de 2009

FUGERE URBEM ET LOCUS AMOENUS QUARERE

Ultimamente percebia que fugia de algo. E fugia de medo, como se essa torrente desconhecida pudesse amaldiçoar suas coisas sagradas, sua mágica secreta. As pessoas lá embaixo estavam enlouquecendo facilmente, cegando os olhos da alma, manipulando com substâncias amargas a essência da lágrima, as estruturas da fome. Era preciso fugir disso, era preciso se imunizar desse mal.

Em dias assim, em que a insanidade já se fazia sentir pelos calcanhares, ele subia até o mais alto que podia, onde o clima era ameno, onde a paisagem se tornava mais exuberante e, do alto, observava aquele pequeno caos que se amontoava lá embaixo.

Lá em cima, eram apenas ele, o silêncio e o espaço. Ali, sim, ele conseguia respirar aliviado, porque era território proibido para as banalidades desses males modernos. Respirava fundo e se enchia dos tons lilases que se cintilavam pelo céu durante o cair da tarde.

O conforto daquele frio descascava o bronze artificial urbano. Ali, sim, ele podia ser a verdade. Ali ele vestia sua alma com essa riqueza gratuita que o tornava pleno. Era dono de quê? Era dono daquilo que os homens não podem se apropriar, dono das coisas que somente a alma pode ser dona sem se apoderar... Ali ele se perdia e se encontrava, sem se preocupar em ter; apenas em ser. Apenas em ser.

Hérlon Fernandes Gomes

20 de junho de 2009.

P.S.: Fotografia tirada do alto da Serra do São Filipe - Nossa porção de Chapada do Araripe. Fim de tarde.

terça-feira, 2 de junho de 2009

CAETANO VELOSO, show do Zii e Zie, Juazeiro do Norte – CE.

Sábado, dia 29 de maio, Juazeiro do Norte – CE. A Applausu's Casa de Shows estava lotada para receber pela primeira vez o ícone da música popular brasileira: Caetano Veloso. O artista está em turnê com seu novo trabalho, o álbum Zii e Zie, inaugurando um novo ritmo, o transamba -  misto de samba e rock.


Caetano Veloso é um dos nossos artistas mais consagrados, daí a ansiedade de todos por um show desse baiano-brasileiro-cidadão-do-mundo.


Ele praticamente se deteve a divulgar as canções do novo álbum, não deixando de excursionar por outros sucessos de sua carreira, como Maria Bethânia e Irene, para relembrar os anos de repressão da ditadura militar, quando merecidamente fez menção aos caririenses Violeta Arraes Gervasieu e Miguel Arraes, companheiros e braços fortes do artista durante seu exílio em Paris, no final dos anos sessenta. Especificamente Caetano dedicou a música Aquele Frevo Axé para aquela que ficou conhecida como a embaixadora dos exilados em Paris.



(Caetano e Violeta. Paris. 1970. Fotografia do site 

oficial da Fundação Casa-Grande)

O show contou com uma estrutura de iluminação bem administrada, brincando com as nuances de cor que faziam realmente a asa-delta pousada sobre o palco parecer voar sobre as turbulências de vídeos que projetavam chuvas torrenciais como pano de fundo.



O show do Zii e Zie (tradução do italiano para tio e tia) traz um Caetano renovado, mas que não se esquece dos traços característicos de sua personalidade, como seu senso político aguçado presente na composição A base de Guantânamo ou sua verve polêmica na música Tarado. A similitude de algumas canções com o rock é desvendada pela guitarra de Pedro Sá, assim como a bateria de Marcelo Callado e o baixo de Ricardo Dias Gomes, integrantes da banda Cê.


A Applausu's cantou em uníssono Não identificado. O público certamente sentiu falta de mais sucessos; mas é perfeitamente compreensível um artista divulgar seu novo trabalho e não se limitar a cantar canções do passado. Caetano é um artista inventivo, afinal, fazer uma antologia dos seus sucessos e divulgar um novo trabalho não deve ser tarefa fácil para agradar a seu público exigente e tão heterogêneo.

O cantor finalizou o show com Força Estranha, sob uma fina neblina deste ano de tanto cinza no espaço, de nevoeiros que coincidentemente (?) ilustram a capa do álbum. Zii e Zie representa o Brasil de transição das eras FHC e Lula, conforme se revela na composição Lapa. Este novo trabalho parte para analisar os conflitos do homem moderno, acostumado a se “coisificar”, a se prender em rotinas angustiantes.

 

Hérlon Fernandes Gomes

terça-feira, 28 de abril de 2009

PLA-CATA-TÔNICO

Não é tão simples assim se livrar de um desejo que nos tenta, que nos quer mudar a cor do tempo. Não é simples porque desejos assim prometem o êxtase da felicidade. Era assim que ele se lembrava daquela mulher, que tinha como enorme defeito estar casada com seu melhor amigo.

Era uma paixão platônica de anos, guardada no seu âmago como o mais perigoso segredo. Conseguiu se envolver em outros amores, mas a presença de Estela atormentava-o. Gostava de pronunciar seu nome em segredo, sentia-se um adolescente. Os olhos dela lhe diziam de uma cumplicidade de desejo, afogavam-se cheios de luxúria por três segundos que fossem...

Certa noite o amigo insistiu que tirasse Estela para dançar enquanto pegava uma bebida... Pensou em inventar uma desculpa qualquer para recusar o convite... Mas seria a primeira vez de uma maior proximidade de ambos. E que proximidade...

Ele ainda tem guardada a exata sensação da frieza das mãos dela e a gostosura que foi poder sentir sua silhueta roçar mais firmemente a superfície da mão... Corações aos pulos. Nenhuma palavra. De repente se olharam fixamente, muito além dos três segundos habituais, e aquele momento queimou os dois.

Nesse silêncio, disseram tanto de cada um... Ele enxergou o mesmo delírio de desejo e culpa que via em si, mas o arrepio de deleite que lhe avolumava as formas entorpeceu-o mais e mais. A música parou de tocar, era preciso rever o amigo.

— Não sabia que você dançava tão bem, Roberto!

— Danço? – retrucou meio sem jeito... Espero surpreendê-lo em mais oportunidades como esta, amigo!

Riram-se e brindaram.


Hérlon Fernandes Gomes

28 de abril de 2009

quinta-feira, 2 de abril de 2009

MINHA PAIXÃO PELOS VINIS - I



  Sempre fui apaixonado por discos de vinil, talvez pelo mundo paralelo do qual os mesmos me cobriam. Eu me achava precoce entre as outras crianças e já gostava de timidamente observar  como as pessoas sentem o mundo. Escutar os antigos boleros que tocavam na eletrola da casa de meus avós era um programa que eu curtia em segredo.
  A casa vivia em música. Aquela eletrola fez a alegria de muita gente. 
 O acervo era volumoso e variado. Com o tempo fui aprendendo a distinguir os discos. Os mais antigos, bem pesados e quebradiços, rodavam em 78 rotações por minuto, bem rapidamente se compararmos com os Long-plays mais recentes de apenas 33 e 1/3 RPMs. Aqueles conseguem se perpetuar no tempo, pois as gravações são bem espaçadas, cada lado armazena apenas uma música -  se não se espatifam no chão, já que são de goma-laca - frágeis como o vidro. Por esses eu tenho paixão...   Infelizmente apenas alguns restaram dos muitos que lá havia. Vez por outra tenho a sorte de barganhá-los em sebos espalhados por esse Brasil de meu Deus... São presentes que satisfazem uma compulsão da minha alma. Desterram o charme de um tempo esquecido, quando os sentimentos pareciam valer mais. Ouvi muitos boleros de Dalva de Oliveira, Isaura Garcia, Emilinha Borba, Ângela Maria. Eles marcaram e povoaram inúmeras atmosferas apaixonadas... 
  Quero postar para vocês um vídeo de minha eletrola  ISABELA VI - A VOZ DE OURO rodando um 78RPM de Eladyr Porto:  o tango QUERO VER-TE UMA VEZ MAIS. Música típica dos anos 50.


P.S.: Para mãe, as tias Fátima, Naíde, Neta, Tantor, Lurde e Maria (as que repartem comigo lembranças desse tempo de velha guarda). Para vovó Hozana, na sua lucidez de 91 anos. Com amor.

domingo, 8 de março de 2009

FUGA DE UMA PAIXÃO


Vim me despedir de ti. Este será o nosso último encontro. Resolvi renunciar a essa escravidão, a essa dependência que me permiti durante um mal tempo. Cansei-me desses encontros clandestinos.... Agora é tempo de outras nuances, porque tuas migalhas de prazer não me bastam... Eu quero muito mais...
Por ti eu perdi um tempo precioso de que necessito agora recuperar... Talvez digas que é muito mais simples culpar-te exclusivamente pelos meus infortúnios; mas só agora me sinto verdadeiramente forte, renovado por essa experiência inédita de esperanças.
Penarei um tempo por tua falta, mas se é esse o mal necessário, aprendo a me convencer de que as descobertas das verdades às vezes precisam doer. A dor ajuda a gente a esquecer...
Outros desejos agora me habitam: coisas mais perenes e duradouras. Uma alegria insiste em musicar meus dias, porque eu me permiti. Não, não tens razão em me falar em liberdade nesse nosso tempo, porque minha dedicação a ti era de fiel devotado... E nada de bom me fizeste. Tiraste-me da realidade do mundo, freaste-me os passos de uma estrada que ainda se anuncia bela...
Sim, precisas ouvir tudo isso, principalmente porque sabes que nada disso é mentira, porque nada disso vai te macular nem engrandecer... Nem isso é minha vingança; é simplesmente meu abandono, minha fuga desse mal que me causei.
Estou pronto para partir.

P.S.: Queimei todas as nossas fotografias.



Hérlon Fernandes Gomes

Crato - CE

08 de março de 2009

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

ETERNO OUTONO

           Era uma solidão desoladora. A velhice combinou-se também à saudade. Tantas pessoas importantes na vida de qualquer ser humano normal, perdidas durante estes longos anos: pais, marido, as irmãs mais unidas, tantos amigos... Criara tantos filhos... A casa às vezes revivia épocas passadas. O tempo passava lentamente e fazia a velha senhora relembrar, para não enlouquecer, esses momentos vivos.

            Os sentimentos exalavam cheiro de baús esquecidos, onde ela atestava as felicidades do passado. José, Isaura, Miguel, Alice... Nomes que só eram reconstruídos porque apenas ela vivia sobre esta terra. Todos se foram... Sua vida passou a ser um fardo para si mesma? Tinha medo de estar concordando com isso...

            Suas companhias freqüentes tornaram-se em um gato, um sabiá e algumas plantas no jardim, que definhava à medida que sua artrite consumia-lhe os ossos. As tardes vez por outra ganhavam cores, quando desenterrava da estante os velhos vinis... Lembrava que já pôde dançar, que os perfumes enfeitiçaram sua mente com outros desejos...

            Um disco de tango tocava no presente, tocava no passado... Diante do espelho ela se assustava; aceitava, perplexa, essa erosão do tempo que se vingava de sua graça. Diante da penteadeira, deparou-se com objetos sem serventia: uma caixa de pó, um batom, um perfume vencido, uma presilha de madrepérola. Penteou-se e seu cabelo denotava que o tempo teimava em apagar suas cores; ajeitou a presilha a um canto do cabelo – como no passado. O pó de arroz acentuou-lhe a fantasmagoria; o carmim nos lábios, os traços cômicos (?), trágicos (?)... 

    Reconstruiu-se no passado, era tão leve e cheia de esperanças... Ia valsando tropegamente pelos mosaicos encardidos. Reencontrava os nomes do passado, conversava alto, até que o disco acabava... Um dia fora pega de surpresa pela visita inesperada da filha, pintada dessa maneira... “Uma velha gagá”, quem havia pensado nisso? O que é a senilidade? No que a solidão nos transforma? Por que a velhice em sua vida fora sempre um eterno outono?

 

 

Hérlon Fernandes Gomes

13 de fevereiro de 2009 (sexta-feira)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

EU POR MIM MESMO

E vai ter somente gosto de desejo, não mais aquela vontade doída de ser a parte de alguém, de me depender. Vai ser bom me perder um pouco de mim, sem precisar ir tão longe nos meus limites... Vai ter gosto de aventura, de mim me bastando, sem me perder num vazio sem nome. Eu rirei do tempo, das coisas que fiz sérias demais e que não mereciam uma noite de insônia, porque todo o solo pisado é agora conhecido, todo sentimento já tem um reflexo nas paredes do meu coração.

Deixei de ser selvagem. Eu me domestiquei na mesquinhez dos homens, na sede dos poderosos, nos desejos de luxúrias indecentes. Tudo vai ser mais fácil, porque eu li Drummond e ouvi Chopin quando me navalharam a alma. Qualquer dor agora sangrará menos, já que todo antídoto se destila em mim. Não obstante me queimem em praça pública, ainda que tentem assassinar minha poesia natural – este encanto que não me pertence; nada alterará minha fórmula.

Continuarei a nascer como as flores silvestres que perfumam as colinas intocadas; como a pérola cravada no mais profundo e inacessível coral. Porque agora aprendi a me sentir, a me querer bem. Agora descobri o que realmente me importa, aprendi a construir o que me felicita, pois o destino nos pertence.

A inveja dos infelizes me causará piedade. Entregarei ao Pai essa fraqueza dos homens sem fé e estamparei meu sorriso. Cultivarei essa vontade insaciável de amar e buscarei sempre a felicidade: esse sentimento incompleto, essa vontade ininterrupta que me preenche e nunca me satisfaz plenamente.

 

Hérlon Fernandes Gomes

23 de Janeiro de 2009.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

SHOW MARÉ - ADRIANA CALCANHOTTO - CRATO - CE (16/01/09)

O Cariri é uma região que se destaca, no cenário cearense, por sua independência cultural, principalmente. O Crato já tem cara de vanguarda e impressiona não somente pelos artistas que abriga, mas pelo público de fino gosto quando o assunto é arte.

A comunidade intelectual vibrou de expectativa pelo retorno de Adriana Calcanhotto e seu show Maré.

A noite escura, prenúncio de inverno, fez com que algumas pessoas temessem a chuva. Mas São Pedro e Santa Clara certamente colaboraram. A única estrela da madrugada era ela: Adriana.

O West Card Hall estava apinhado de gente, que se dividia entre os pagantes da pista e do front stage. A princípio, aquele apartheid incomodou quem não foi informado sobre essa divisão; por outro lado, os fãs mais calorosos não se importaram em pagar um ingresso mais caro para estarem mais próximos da queridinha da MPB.

Entrou radiante, usando vestes em tom rubro que fizeram lembrar o parangolé pamplona. Salientou a satisfação de estar retornando ao Cariri e foi deveras convincente. Não se apavorou diante de uma falha do som, que deixou todos no silêncio por cerca de dez segundos.

A iluminação em tons azuis e o palco completamente aberto atrás, com a noite negra caririense como pano de fundo, foi o cenário para a performance da artista.

O show MARÉ encantou. O novo álbum é de uma poesia pungente, trazendo composições profundas, como SEU PENSAMENTO e TEU NOME MAIS SECRETO à rítmica PORTO ALEGRE. A cantora não deixou de revisitar seus sucessos, como MAIS FELIZ e VAMBORA, transformando a platéia num coro absoluto.

Injustiça seria não reconhecer o trabalho dos músicos que a acompanham. Eles são a harmonia do show: Alberto Continentino (baixo, guitarra, escaleta, vocais e berimbau de boca), Bruno Medina (teclados), Domenico Lancellotti (mpcs, bateria, percussão, baixo e guitarra) e Marcelo Costa (bateria e percussão)

O figurino da Partimpim impressionou por sua discreta elegância: saindo do vermelho incandescente a um azul mais suave até um sobretudo de veludo azul escuro.

Adriana Calcanhotto é dessas artistas que possuem um encanto especial. Não resistimos ao canto da sereia. Permanecemos hipnotizados e já saudosos de sua presença.

 

Hérlon Fernandes Gomes

P.S.: Escrito originalmente para a coluna do site www.caririfest.com.br