quinta-feira, 26 de junho de 2008

O SEGREDO DE MARINA II

Ninguém tem culpa de possuir desejos que não tenha procurado despertar. Que tamanho terá a ferida incurável de uma paixão não vivida? Marina havia entrado nesse estágio de exclusiva dedicação a esses pensamentos secretos. Era fugitiva abrigada em si. Passava a maior parte das horas contemplando suas conjecturas, analisando desejos impossíveis, precisando ser desleal a muitas pessoas. Fora do mundo das idéias, angustiava a impossível ânsia de se entregar ao que sentia.
Não sabia em que momento principiara aquela devoção por Sérgio, mas soube guardar isso no seu recanto mais profundo e isso talvez a tornasse numa perfeita mentirosa. Isso não comungava dos seus princípios... Disfarçava de todos o que no íntimo seria uma feliz verdade. As pessoas todas deveriam ser assim? Precisaríamos carregar frustrações para amadurecer? Seu desejo talvez nem fosse uma promessa de plenitude...
Sua vida, entre Laura e Sérgio, tornou-se um teatro, embora sua consideração e respeito fossem reais. O mais angustiante era ter de ser amiga quando na verdade queria ser amante dele. Enraivecia-se por isso. Por que justamente ele? Vivia cercada por homens bem mais interessantes, livres e que certamente apostariam numa vida a dois. Mas aquele fogo, aquela luz que acende na gente despertou-se por ele. Tinha medo de se tornar somente aquilo: aquele desejo reprimido.
De repente o sentimento frustrado estava limitando sua linha de pensamento. Não podia ter momentos ociosos, pois seus pensamentos se ocupavam imediatamente de desejos e fantasias... Depois vinha a culpa... Meu Deus do Céu, até quando sentiria isso? A gente deveria ter o poder de renunciar determinados sentimentos – muitos deles desembocam em abismos de sofrimentos.
Gostava de opinar quando solicitada, sentia-se importante por ter poder determinante sobre as coisas dele, pois os pensamentos de ambos andavam sempre em sintonia.

Hérlon Fernandes Gomes, Brejo Santo - CE, 26 de junho de 2008.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

PRESENTE


PRESENTE
Você parece ser meio eixo,

Meu caminho menos perigoso.

Você me devolverá uma luz perdida,

Restaurará minhas cores...

Você me trará serenidade

Nessa sua calmaria de mar a amanhecer.

Não mais desperdiçarei o calor do meu corpo,

Porque você gosta da minha quentura,

De mim perto da sua pele...

Você me renova uma saudade esquecida,

De como as coisas se refazem nesta vida,

Do quanto nossa esperança se ressuscita.

Já nenhum passado me incomoda,

Lembrar de você, por si só, me basta.

Recuperei meu encanto,
Voltei a enxergar meu brilho,

Tudo parece mais possível.

Sinto uma primavera inteira explodir em mim
,
A arrepiar-me timidamente,

A agasalhar-me de qualquer abandono.


Hérlon Fernandes Gomes, 23 de junho de 2008 - Madugada de São João - Brejo Santo - CE.
P.S.: Para quem me equilibra entre os pratos de uma balança.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

OS AMANTES


Os dois eram solteiros, desimpedidos de viver qualquer romance. Ambos haviam saído de um casamento fracassado há poucos meses, não sabiam bem os rumos certos que os levariam a um ideal recomeço. Criaram, pois, uma (meramente?) intimidade de cama. Moravam em cidades diferentes, foram amigos de faculdade e se achavam simpáticos no convívio diário.
Divorciados, um dia qualquer, encontram-se, trocam telefones, convite dele pra sair, uísque, um quarto de motel... Nascia uma química perfeita. Passaram a se encontrar nesses dias premiados. Levavam uma rotina estafante, de modo que momentos assim tinham um sabor renovador.
O dia era aquele.
Banhou-se, usou o melhor óleo, a melhor lingerie; perfumou-se em diversos lugares especiais e sorria sempre. Dentro do peito essa aflição da ansiedade, os olhos no relógio...
Seis e meia. Era pontualíssima.
Ele era asseado, vaidoso. Assegurava o hálito diante do espelho. Ela mexia com a sensibilidade de sua espinha: dava-lhe arrepios uma simples imaginação. Tirou bem a barba, perfumou-se igualmente em diversos lugares especiais.
Abriu a porta do carro, ela entrou. Cumprimentaram-se como dois amigos, mas seus olhos incendiavam suas almas. Enquanto mudava uma marcha, ele aproveitava e deslizava a mão sobre sua coxa; ela lhe retribuía com um cheiro no pescoço.
No quarto, as palavras deram lugar aos desejos. A maneira como se beijavam e se tomavam um do outro dispensava qualquer explicação. Foram se despindo peça a peça, num ritual cheio de risinhos indecentes. Até que estavam nus, um diante do outro: dois desejos contempladores. A cama era pequena para tanto querer. A massa se movia como se quisesse ser uma só, entre gemidos, cochichos... Ele sabia bem a maneira de acendê-la a chama mais brilhante... Aquela boca possuía um deslizar como um mapa previamente desenhado nos sentidos dela... Seus braços a aconchegavam como se soubessem a maneira exata de acomodá-la... Ela reconhecia dele aquele cheiro característico, que vinha de dentro da boca, no cheiro do suor... Gostava de tê-lo em suas mãos, de esquentar suas costas com o quente do bafo – a boca a desejá-lo e tê-lo como um doce precioso.
E viram luzes.
Depois, o banho tomado. Mais conversa. Agora discutiam problemas cotidianos, planejavam um próximo encontro, ratificavam a saudade de um pelo outro... Não sabiam bem o que representavam para si; sabiam que se gostavam e se entregavam um pro outro sem quaisquer amarras... Cada qual voltaria ao seu mundo comum, cada qual com seus problemas, acompanhando o passar do tempo que lhes premiará em breve com um desejável e próximo recomeço.

Hérlon Fernandes Gomes, Crato – CE. 15 de junho de 2008.
P.S.: Para quem traz no nome o governo da paz.

terça-feira, 10 de junho de 2008

DE CORPO INTEIRO

Hoje é meu aniversário, completo vinte e sete anos de vida. É sempre uma data renovadora para mim, um dia para muitas reflexões, muitos agradecimentos a Deus, muitas comemorações também. Eu sinto uma energia diferente no ar. Não é um dia qualquer como os outros – prefiro entendê-lo como especialíssimo para mim. Recebo ligações, mensagens no celular, presentes... e isso me acorda de minha solidão íntima, porque me julgo mais meu do que de alguém, de um tempo, de um mundo... Minha consciência tem-me roubado da existência, tenho continuado a ser mais pensamento, menos impulso. Estou aberto à energia luminosa desse dia, estou sincronizado às graças que me desejam. A maior festa tem acontecido no interior de minha alma. É lá onde pulsam meus melhores anseios, é lá onde mora o melhor de mim. Todos esses anos tenho procurado me despir dos meus defeitos, de máculas que talvez me diminuam diante do que é justo. Andei seguindo essa réstia de luz por muito tempo, e agora minhas pupilas quase não suportam a claridade que se me apresenta! Estou me frustrando menos por pequenas ou grandes coisas; aprendi a tirar o melhor proveito mesmo no maior desterro. Estou acreditando mais em campos cheios de verde, abertos à fertilidade que tanto esperei! A esperança voltou a inflar meu peito e não me decepciono quando ela parece fugir, porque num instante ela retorna sorrateira e me arranca um sorriso, arrepia-me a pele, mareja meus olhos... Estou gostando de sentir o vento, de ver o mar, de conversar com meus amigos, de curtir mais minha família... Não faço mais de ninguém o meu mundo, nem quero sê-lo de alguém – é muita ousadia isso, a vida é grandiosa demais! Estou gostando de ser um projeto divino de sucesso, um projeto de sucesso da vida, dia após dia! Amém.

Hérlon Fernandes Gomes, Brejo Santo - CE. 10 de junho de 2008.

sábado, 7 de junho de 2008

O CABARÉ DE XICA MOURA

O Cabaré de Xica Moura foi o principal reduto boêmio da luxuriosa juventude brejossantense na década de 1960. Ficava na antiga Rua do Rói, um antro do meretrício desta cidade. Na vitrola rodavam discos como os de Nelson Gonçalves: Fica comigo esta noite e não te arrependerás/ Lá fora o frio é um açoite, calor aqui tu terás...
O movimento no bar era intenso, dia de sábado. Os rapazes chegavam com sua melhor roupa, sua melhor loção, seu melhor penteado... Era sim uma juventude mais atrevida, um pouco distante das convenções sociais; estava ali com o firme propósito de se entregar à esbórnia! Lindas raparigas desfilavam entre todos, oferecendo gratuitamente seus sorrisos... Seus corpos eram leiloados entre cochichos de ouvido, seus perfumes de lavanda ou patchouli incendiavam as roupas dos pares, entre cartas escondidas debaixo das cama, cheias de promessas felizes...
O lugar tinha o gosto do pecado e da felicidade postiça que, mesmo assim, continuava a ser felicidade... Xica, morena fogosa, ditava as ordens, organizava pares, anunciava novas mulheres – à boca pequena, entre cochichos na feira... Desfilava arrumada e bem pintada, rodando sua sombrinha no meio da rua, entre olhares fulminantes de mulheres casadas e/ou compromissadas.
As noites eram quentes, sob uma luz não tão forte, entre cachaça, rum, uísque, conhaque, cerveja... Uma ala grande conservava um salão onde os casais podiam dançar e adiantar os planos da noite... Um corredor agregava inúmeros quartinhos, onde se consumava o prazer comprado.


Hérlon Fernandes Gomes, Brejo Santo - CE, 07 de junho de 2008.

P.S.: Xica Moura já não existe entre nós. Minhas lembranças a seu respeito datam da minha infância, quando Xica já estava decrépita e maluca, atirando desaforos e pedras em quem cismasse, no meio da rua. Pedia de qualquer um algum trocado, para depois virar uma pinga num bar de uma esquina...

terça-feira, 3 de junho de 2008

INSTANTÂNEO DE LAURA - SETEMBRO


Ela queria estar imune a qualquer lembrança desse passado – fosse boa ou ruim. O importante seria conseguir tocar seus novos rumos sem se prender entre comparações e saudades. Até mesmo os momentos bem vividos estavam contaminados desse ranço, desse senso negativo, de sensações que escondiam os sóis desse tempo. Compreendia que havia sido a grande arquiteta desse mundo de ilusões, não porque o quisesse – movida por sentimentos escravistas.
Durante muito tempo viveu o deslumbre, o verniz do encanto, que a fazia cegar as mentiras de Sérgio. Se vez por outra se sentia presa a ele, julgava-se liberta pela felicidade de sua companhia, por essa aprisionante sensação de sentir livre o coração.
Agora saíra desse casulo de mentiras. Estava ligada aos aspectos mais superficiais de si: desde o frio da pele até a contemplação de um suspiro profundo. Emergia das brumas, como se dela pudesse gerar-se uma energia que revertesse os seus azares. Já era boa essa sensação de praia após um nado de desespero. Seu passo voltava a ser firme.


Hérlon Fernandes Gomes, Brejo Santo - CE. madrugada de 04 de junho de 2008.
P.S.: Às lagartas que se julgam borboletas.